[...]
É importante observar que a conceituação das “cidades-globais” se desenvolve em um período histórico (a partir da década de 70) em que os impactos espaciais da “revolução da informática” e da reestruturação produtiva – que Harvey (1992) apresenta como a passagem do sistema de acumulação rígida do fordismo para um modelo de acumulação flexível do pós-modernismo – são bastante significativos nos países industrializados. As cidades do Norte passaram, com o desmonte das estruturas tradicionais e rígidas do espaço da produção fordista, e com a dispersão espacial permitida pelas tecnologias de comunicação, por um forte processo de desconcentração industrial, exemplarmente verificado na acelerada degradação e abandono de outrora poderosíssimos centros industriais fordistas, como, por exemplo, a cidade norte-americana de Detroit.
Apenas alguns antigos centros industriais com know-how acumulado de mão de obra e possuidores de centros de pesquisa e desenvolvimento e universidades conseguem reciclar-se para o uso de novas tecnologias de produção (LIPIETZ). No mais, a crise de consumo e o alto grau de desemprego levaram muitos centros urbanos europeus e norte-americanos à situação de estagnação e rápida degradação. Assim, a matriz teórica da “cidade- -global” aparece como para evidenciar um modelo “que deu certo”, usando o caso das cidades mais poderosas na liderança desse capitalismo “pós-reestruturação produtiva”. O discurso é o de que são justamente as “cidades-globais” aquelas que foram – e serão – capazes de superar o processo de desindustrialização e degradação comentado anteriormente, o que explica o esforço verificado para rotular toda grande cidade de “global”. Afinal, o “selo de qualidade global” representaria uma garantia de sobrevida em um cenário econômico incerto.
A busca por uma categorização das cidades em diferentes níveis de “globalidade” levou os autores de linha teórica a estabelecer um conjunto de “atributos” necessários à cidade-global, que variam muito pouco de autor a autor. Em uma abordagem crítica, Carvalho resume com clareza esse raciocínio:
O tipo ideal que se construiu para definir a cidade-global partiu das características comuns observadas nas metrópoles que sofreram o impacto da globalização da economia. O que foi a princípio compreendido como especificidade histórica vivida por algumas metrópoles passou a se constituir em atributo a partir do qual se poderia designar como “global” determinadas cidades. Seria, portanto, “global” a cidade que se configurasse como “nó” ou “ponto nodal” entre economia nacional e o mercado mundial, congregando em seu território um grande número das principais empresas transnacionais, cujas atividades econômicas se concentrassem no setor de serviços especializados e de alta tecnologia, em detrimento das indústrias. (CARVALHO, 2002, p. 72).
De maneira geral, a palavra-chave dessa interpretação é fluxo, para denominar as diferentes dinâmicas de deslocamentos espaço-temporais típicas da economia global “flexível” e financeirizada: fluxos comerciais, de passageiros, de produtos, de dinheiro, de informações, de conhecimento, etc. Podemos resumir da forma que segue o conjunto de atributos das cidades-globais, segundo a visão dos teóricos da questão. Vale notar, entretanto, que se trata de uma relação crítica. A apresentação dessa sistematização nos servirá de base de referência para, mais adiante, fazer as considerações críticas que nos parecem necessárias. Assim sendo, define-se que as “cidades-globais”:
• São “pontos nodais” de relação entre a economia global e a nacional.
• São o palco de grande volume de negócios transnacionais e recebem intenso fluxo de executivos a negócios (“turismo de negócios”).
• Abrigam número significativo de sedes de grandes empresas, preferencialmente sedes mundiais de empresas de atuação transnacional, com ênfase nos setores financeiro, bancário, mas também “produtivo de ponta” e inovadores (telecomunicações, informática, etc.). • Abrigam bolsas de valores importantes para as transações regionais e/ou, preferencialmente globais, recebendo importante fluxo de capitais financeiros.
• Apresentam uma supremacia econômica, às vezes quanto ao número de empresas, às vezes quanto ao valor adicionado das atividades terciárias, em especial aquelas denominadas “de ponta” ou “avançadas”, ou seja, atividades de apoio às empresas de atuação globalizada: serviços financeiros, de contabilidade, publicidade, consultoria de negócios, serviços jurídicos internacionais, outros serviços empresariais, telecomunicações, apoio em informática, produção de softwares, etc.
• Concomitantemente, apresentam um declínio significativo das atividades industriais fordistas, ou ao menos das taxas de emprego industrial.
• Têm alto grau de especialização do emprego, em negócios e serviços financeiros e nas atividades de serviços acima citadas. Ao mesmo tempo concentram atividades de baixa remuneração relativas a serviços de apoio logístico, como limpeza e segurança de edifícios, etc.
• Usufruem de ampla e disponível infraestrutura de telecomunicações e informática, tendendo a concentrar- -se em “distritos” com grande número de edifícios de alta tecnologia e grande conectividade com os sistemas internacionais de comunicação.
• Concentram sedes de empresas com significativa parte de sua receita oriunda de exportações.
• Apresentam importante atividade hoteleira voltada ao “turismo de negócios”.
• Oferecem infraestrutura para a recepção de grandes eventos do circuito cultural e esportivo “global”: espetáculos da Broadway, grandes exposições, olimpíadas, feiras universais, etc. Ou seja, como apontado por Friedmann, as cidade-globais seriam o locus privilegiado para a acumulação e a concentração de capital transnacional, na fase atual do capitalismo financeiro globalizado.
FERREIRA, Jão Sette Whitaker. O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Ed. da Unesp; Salvador: Anpur, 2007. p. 22-24.
Nenhum comentário:
Postar um comentário