Para o ex-ministro Alexandre Padilha, criador do Mais Médicos, a retirada dos profissionais cubanos afetará, sobretudo, as áreas mais vulneráveis
'Bolsonaro colocou o conflito ideológico com Cuba acima dos interesses da população', diz Padilha. |
Ao lançar o Mais Médicos em 2013, o então ministro da Saúde Alexandre Padilha previu uma “revolução” na saúde pública brasileira. Muito além do provimento emergencial de médicos em áreas vulneráveis ou remotas, o grande objetivo do programa era estruturar a rede de atenção básica no País. Assim, seria possível garantir o diagnóstico e o tratamento precoce das doenças, de forma a evitar que os pacientes chegassem aos hospitais com complicações mais graves.
“Tudo isso foi brutalmente interrompido pelo despreparo do presidente eleito, que colocou o conflito ideológico com Cuba acima dos interesses da população”, afirma o médico infectologista, recém-eleito deputado pelo PT.
CartaCapital: Qual é o impacto da saída dos médicos cubanos para a saúde pública?
Alexandre Padilha: É desastroso. Esses profissionais estão nas áreas mais vulneráveis do País. Em 1,7 mil municípios, só havia médicos cubanos inscritos no programa. Essas cidades já vinham sofrendo com o aumento da mortalidade infantil em decorrência dos cortes em ações sociais e de saúde durante o governo Temer. Vale lembrar que os cubanos só foram chamados depois que 11 mil vagas não foram preenchidas por brasileiros, que têm prioridade na seleção.
CC: Bolsonaro lançou dúvidas sobre a qualificação dos cubanos, que não foram submetidos ao exame de revalidação dos diplomas médicos.
AP: Quando era deputado, Bolsonaro insistia nessas críticas e saiu derrotado. Desde o primeiro momento, ele desqualificou profissionais cubanos, dizendo que nem médicos eram. Foi derrotado no Congresso, no Supremo Tribunal Federal, na Organização Mundial da Saúde, por centenas de pesquisas científicas que atestam os impactos positivos do programa. E mais: em cinco anos de experiência, pode consultar a lista de denúncias de erros médicos, não há um único profissional cubano denunciado.
CC: Por que o Ministério da Saúde abriu mão de aplicar o Revalida para os profissionais do programa?
AP: Passamos dois anos estudando as experiências internacionais. Nosso modelo é inspirado, sobretudo, na experiência da Austrália e do Canadá, que também têm sistemas universais de saúde e criaram programas para fixar médicos em áreas vulneráveis ou remotas. Na Inglaterra, 37% da força de trabalho é composta de estrangeiros. Lá eles adotam outro modelo, porque existem muitas colônias inglesas, então são possíveis parcerias de recrutamento.
Na Austrália, os médicos estrangeiros podem ficar até 20 anos com registro provisório, para que eles permaneçam nos locais com maior carência de médicos. Se a gente revalidasse os diplomas, eles poderiam atuar em qualquer cidade, hospital e especialidade, inclusive na rede privada.
CC: E Cuba é uma referência em atenção básica e medicina preventiva, ou estou enganado?
AP: Sem dúvidas. Cuba foi o primeiro país a erradicar a transmissão vertical do vírus HIV. Possui um índice de mortalidade infantil inferior ao dos EUA. Dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, estabelecidos pelas Nações Unidas para 2015, apenas três países das Américas atingiram a meta de reduzir a mortalidade materna: Canadá, Chile e Cuba. Nem os americanos conseguiram tal feito.
CC: Como fica a relação do Brasil com a Organização Pan-Americana de Saúde, que chancelou esse convênio?
AP: Não falo em nome da Opas, mas nos preocupa muito os posicionamentos desrespeitosos de Bolsonaro com diversos organismos das Nações Unidas. Talvez ele ainda não tenha percebido que a eleição acabou, que ele não é mais um animador de rede social.
CC: E quanto à remuneração dos cubanos?
AP: Sinceramente, esta é uma polêmica criada por quem está mais preocupado em atacar o regime cubano do que avaliar um programa que atende 60 milhões de brasileiros. A dita economia com a suspensão desse convênio representa, na prática, um aumento das despesas no SUS, pois deixaremos de diagnosticar e tratar as doenças fora do ambiente hospitalar.
CC: Mas por que a remuneração dos cubanos não é semelhante à de outros profissionais estrangeiros?
AP: A relação de trabalho é completamente diferente. Os brasileiros ou estrangeiros que se inscrevem diretamente no programa são bolsistas transitórios. Quando se desligam do programa, eles não têm mais qualquer tipo de remuneração. Os cubanos são profissionais empregados por uma empresa de Cuba. Quando eles retornam, continuam empregados e com salário. Cerca de 30% do valor das bolsas é pago diretamente ao médico que está atuando no Brasil. Além disso, ele também recebe auxílio alimentação e de moradia das prefeituras.
Outros 30% vão para um fundo previdenciário para esses profissionais e seus familiares. O restante dos recursos fica com o Ministério da Saúde, para manter a formação desses profissionais, custear o sistema de saúde e também para financiar ações humanitárias pelo mundo. Cuba também participa de missões sem cobrar um centavo por isso, como ocorreu no Haiti e na África.
Fonte: CartaCapital.
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