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sábado, 28 de outubro de 2017

A “ciência” da Terra plana

A ideia de que não vivemos em uma esfera está cada vez mais popular. Entenda aqui por que os terraplanistas estão redondamente enganados

O homem nunca pisou na Lua. As imagens produzidas pela Nasa não passam de obras de computação gráfica. A ciência manipula a realidade de acordo com os interesses dos poderosos. Alguma dessas suposições parece familiar? É bem provável que sim.

E, agora, mais do que em muito tempo. Após ganharem um banho de loja, muita divagação teórica e um número ainda maior de vídeos na internet, tais ideias estão de volta sob uma nova bandeira: a dos terraplanistas. Quase 50 anos depois do lançamento da Apollo 11, e 500 após a circunavegação de Fernão de Magalhães, cada vez mais gente acredita que a Terra não é um globo. Em vez disso, ela seria uma pizza gigante – um disco coberto por uma redoma invisível e cercado por um paredão de gelo. Também estaria parada, deitada eternamente em berço esplêndido no centro do Universo.

Data do final do século 19 o primeiro lampejo moderno sobre a eventual platitude da Terra. O marco é o ano de 1881, quando Samuel Rowbotham publicou Astronomia Zetética – A Terra não é um globo, um apanhado de décadas de estudos na área e interpretações literais de passagens da Bíblia. Sob o pseudônimo “Paralaxe”, o inventor inglês tomou para si uma missão ousada: revelar as “mentiras” cultivadas pela ciência, responsável por esconder o real formato de nossa casa.

Rowbotham começa sua obra tentando refutar a evidência prática mais antiga da curvatura terrestre. Segundo ele, experimentos como o do grego Eratóstenes, nascido em 276 a.C., que conseguiu medir a circunferência da Terra, contariam com um erro crasso: considerar o Sol como um astro enorme e distante da Terra. Eratóstenes mediu a circunferência do planeta comparando os ângulos com que a luz do Sol incidia em dois postes instalados em duas cidades distantes. Supondo acertadamente que o Sol é grande (e longínquo) o bastante para que seus raios cheguem à Terra sempre paralelos uns aos outros, ele concluiu que o que causava a diferença entre os ângulos nos postes só poderia ser uma (até então) suposta curvatura da Terra. Com os dados na mão, Eratóstenes calculou que o planeta é uma esfera com 46 mil quilômetros de circunferência. Uma precisão absurda para 2 mil anos atrás: a medida real é de 40 mil quilômetros.

Terra chata

Para os terraplanistas, o Sol e a Lua são bolas do tamanho de cidades, o planeta é cercado por uma muralha de gelo e a gravidade… Bom, a gravidade não existe.



TP: Modelo terraplanista
VR: Vida real

1. ANTÁRTIDA

TP Para quem acredita que a Terra é plana, a Antártida é um paredão de gelo que serve de moldura para a superfície terrestre, segurando a água dos oceanos. Eles dizem que o Tratado da Antártida, de 1959, existe para esconder esse “fato”.
VR Tem quase o dobro da área do Brasil (14 milhões de m²). E o Tratado, assinado por 52 países, estabeleceu-a como território neutro, dedicado à ciência.

2. HORIZONTE

TP Se a Terra é plana, por que a nossa visão não ultrapassa o horizonte? A desculpa aí envolve a neblina e uma suposta limitação da visão humana – o que não faz sentido, já que vemos estrelas a olho nu, e a mais próxima está a 40 trilhões de km (4,3 anos-luz).
VR Alguém com 1,80 m no nível do mar só consegue enxergar a uma distância de 5 km. Dá para comprovar a curvatura da Terra pela sequência de desaparecimento de uma embarcação no horizonte: a parte que some primeiro é a popa, depois a vela.

3. GRAVIDADE

TP Não existe. Só estaríamos presos ao chão por conta de uma força misteriosa que puxa a Terra para cima a uma aceleração constante de 9,8 m/s² – a mesma da gravidade. Seria como se estivéssemos dentro de um elevador gigante, presos ao chão.
VR Existe, claro. E mais: corpos celestes são redondos justamente por causa da gravidade. A massa gera um campo que suga tudo para o centro, moldando-os como esferas.

4. LUA

TP Tem 51, 5 km e descreve sua órbita a 5 mil km do chão.
VR A Lua é só quatro vezes menor que a Terra (com 3.476 km de diâmetro) e está a 384.400 km de distância.
ECLIPSES LUNARES
TP Uma Terra plana não faria sombra. Como explicar os eclipses lunares, então? Uma hipótese diz que o céu tem um “objeto de sombra”. A Lua se esconderia quando esse objeto cortasse seu caminho.
VR São fruto da sombra da Terra projetada na Lua, claro.

5. SOL

TP Tem 51,5 km de diâmetro e fica a 5 mil km de altitude. Funciona como se fosse uma lanterna: ilumina cada porção do planeta em momentos determinados. Ou seja: quando o Sol brilha sobre sua cabeça, é dia. Quando ele está longe, é noite. Simples assim.
VR O Sol tem 1,3 milhão de km de diâmetro (108 vezes mais do que a Terra), e está 149,6 milhões de km distante.

ESTAÇÕES DO ANO

TP Em diferentes momentos do ano, o Sol terraplanista assume órbitas diferentes – se aproximando ou se afastando de cada trópico. E isso estabelece as estações do ano. O raio da trajetória é maior quando o Sol está no “anel norte” e menor quanto está no “anel sul” (veja lá embaixo).
VR Você sabe: por conta do movimento de translação e do eixo de rotação da Terra (inclinado a 23,5 graus), cada hemisfério recebe mais luz solar em determinados períodos do ano. Quando é inverno na parte do sul, é verão no Hemisfério Norte, e vice-versa.

6. MAGNETISMO

TP Alguns terraplanistas defendem que o centro da Terra plana (o Polo Norte) abriga uma montanha magnética que seria a responsável por atrair as agulhas das bússolas. E mais do que isso: para manter o Sol, a Lua e as estrelas em volta do “disco planetário”.
VR Os polos magnéticos estão próximos aos polos geográficos. No centro da Terra, onde as temperaturas podem chegar a 6.000 ºC, existe ferro e níquel em estado líquido. Esse fluido, em constante movimento, gera as correntes elétricas responsáveis pelo campo magnético.

7. ATMOSFERA

TP Os terraplanistas a chamam de atmosplana ou atmocamada – note que “atmosfera” faz referência a um formato esférico, coisa que eles abominam.
VR A camada de gases que envolve nosso planeta fica presa aqui por conta da gravidade, outro conceito que os terraplanistas não curtem.
DOMO
TP É o que nos isola do resto do Universo (seja lá o que exista além da Terra plana).
VR Não existe.

8. MONTANHAS E VULCÕES

TP Abaixo da crosta, haveria uma pressão agindo na Terra plana, resultado da aceleração que ela sofreria para simular a gravidade. Tal movimento teria criado um vasto oceano de magma no manto terrestre, o que justificaria os vulcões.
VR O interior do planeta é instável. Os vulcões e o movimento das massas continentais são os resultados mais notórios desse fato.

A. ATLAS
O mapa-múndi terraplanista usa a projeção azimutal, igual à do símbolo da ONU

B. ESTRELAS
TP Estrelas seriam basicamente lâmpadas de LED: fontes luminosas a poucos milhares de km da Terra.

C. EQUADOR
TP Esta região seria mais quente que a dos polos por estar diretamente abaixo do mini-Sol.

***

Bom, para negar a circunferência da Terra, Rowbotham começou negando Eratóstenes. Criou um modelo teórico em que o Sol não é grande nem está longe – seria uma bola de fogo alguns quilômetros acima das nossas cabeças. Isso permitia, segundo suas contas, que a Terra fosse plana.

Rowbotham não teve tempo de cumprir o legado messiânico que sua última obra criaria, já que morreu três anos depois da publicação de seu livro. Mas a semente estava plantada. Nomes como Wilbur Glenn Voliva, Samuel Shenton e Charles K. Johnson – esses dois últimos, fundadores da Sociedade da Terra Plana (Flat Earth Society) – , deram sequência aos estudos do mestre, espalhando a palavra “ terraplanista” (flat earther) nos Estados Unidos da metade do século 20. Rachas internos deixaram a Sociedade da Terra Plana de molho por umas boas décadas. Em 2009, porém, ela ressurgiu das cinzas e voltou a receber novos membros – e agora faz mais barulho do que nunca.

Parte dessa nova onda terraplanista passa pelo nome de um novo guru, Eric Dubay. Ele é o fundador-presidente da Sociedade Internacional de Pesquisa sobre a Terra Plana e se define como “um americano de 35 anos que vive na Tailândia, onde ensina ioga meio período e divulga a nova ordem mundial em tempo integral”. Entre textões conspiracionistas sobre maçonaria e os Illuminatis, Eric destaca-se pelo trabalho hercúleo de conseguir traduções em 18 idiomas (incluindo árabe, lituano e letoniano) para sua obra seminal 200 Provas de que a Terra não é uma Bola Giratória – transformada, também, em um vídeo de mais de duas horas de duração para seu canal no YouTube.

No Brasil, um dos terraplanistas mais proeminentes é Jota Marthins, dono do Sem Hipocrisia, um canal do YouTube dedicado ao terraplanismo e outras teorias conspiratórias. O objetivo de Marthins é revelar “a farsa da bola molhada giratória”, forma como costuma se referir ao modelo vigente. O paulistano conta com mais de 50 mil inscritos e já obteve mais de 11 milhões de visualizações em seus vídeos – por essas, ganhou o apelido de “Rowbotham brasileiro”.

Sua maior obra, no entanto, é outra: o livro O Universo que não te Apresentaram – Expondo a Maior Mentira da Humanidade, publicação independente comercializada a R$ 70. Caro? Para ele, não: “Em um mundo onde pessoas pagam R$ 350 em obras de ficção científica como as de Carl Sagan, fica difícil calcular o valor para um livro que expõe a verdade”, diz.

As “verdades” reivindicadas pelos terraplanistas se resumem a tentativas de refutar conceitos provados e comprovados por mais de 2 mil anos de ciência. Mas isso não é necessariamente um problema. Para tudo que você quiser questionar, sempre haverá resposta. Por exemplo: a gravitação impede que corpos celestes com uma massa razoável, como a Terra, tenham forma de pizza. Se você pegar uma impressora 3D do tamanho de Júpiter e imprimir uma Terra plana, a gravidade vai puxar as bordas da estrutura para o centro e aglutinar tudo. E em pouco tempo você terá uma Terra redonda, tal qual esta aqui. Se o nosso planeta é plano, então, por que é que ele não colapsa à mercê da gravidade? Fácil. Para os terraplanistas a gravidade não existe. Uma das teorias deles é que a gente só fica preso ao chão porque a Terra acelera espaço adentro, como um elevador gigante, e isso criaria a sensação de gravidade.

Outro enigma da Terra plana é o continente antártico. O Polo Sul do globo, em sua versão amassada, assumiria uma configuração peculiar. Mais do que o controle do nível dos mares, o murão também delimitaria até onde a curiosidade humana tem o direito de se estender. Os segredos que estão fora dessa prisão de segurança máxima ficam a cargo de forças militares internacionais, que estariam resguardando as águas da região, prontos para conter a investida de espertinhos.

Mas o que exatamente impediria alguém com espírito aventureiro de se libertar dessas amarras e matar a maior charada da humanidade por si só? “Esse é um movimento de quem nunca saiu da cadeira, não tirou o pijama”, diz Amyr Klink, velejador brasileiro que viaja para a Antártida todo ano, há pelo menos 30 anos. Segundo o capitão (e toda a ciência já produzida), nada de parede de gelo com altura de prédio de 15 andares ou exércitos garantidores da ordem mundial no continente gelado. “Não sei por que ainda damos ouvidos a um discurso tão equivocado.”

Calma, Amyr. A SUPER também não dá ouvidos. Mas mostrar como os terraplanistas imaginam o planeta serve não só como exercício de fantasia, mas também para ilustrar como funcionam certos conceitos básicos da ciência, a começar pela física newtoniana (a estrela do infográfico desta página, que mostra o quão absurda seria a gravitação de um planeta em forma de pizza).

Mesmo assim, diga-se, há terraplanistas que sonham em usar a ciência a seu favor, e ver se um dia conseguirão provar a quadratura do círculo com métodos consagrados. É o caso de B.o.B., rapper americano e membro honorário da Sociedade da Terra Plana. Ele resolveu se mexer e lançou o projeto de financiamento coletivo “Mostre a curvatura para o B.o.B.”, que estabeleceu a meta ousada de juntar US$ 1 milhão para a compra de satélites e balões atmosféricos, a serem utilizados em estudos terraplanistas. Até o meio de outubro, a campanha havia arrecadado apenas US$ 6 mil. Bom sinal.
Terra ainda mais chata

A vida numa Terra plana, de acordo com a física newtoniana, seria um perrengue.

Este mundo, e todos os outros, são redondos porque a gravidade os fez assim. Mas como seria se a Terra fosse plana e também obedecesse às leis de Isaac Newton? Veja.


1. O formato de disco faria a gravidade atuar de maneira não uniforme. Em uma Terra plana, quanto mais você andasse em direção às bordas, mais a gravidade puxaria você de volta ao centro.

2. Caminhar até as bordas, então, seria como escalar uma montanha que vai ficando mais íngreme.

3. Os prédios teriam de ser cada vez mais inclinados para ir compensando essa influência. Perto da borda, você teria de se segurar para não entrar em queda livre.

4. Ufa. Se você atravessasse a borda, seus problemas acabariam. Na “lateral” da Terra plana, o puxão gravitacional voltaria a ser o de sempre: no sentido do solo.

Fonte: Guilherme Eler / Revista Superinteressante.

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