O negro Antonio Balduíno lutava contra Ergin, o alemão, "campeão da Europa central", sob os olhos do povo, sentado nos bancos do Largo da Sé. Pretos, brancos e mulatos torciam por Balduíno que, ao final, sagrou-se vencedor.
Antonio se destacava como o chefe das quadrilhas de moleques do Morro do Capa Negro. Seus companheiros eram O Gordo, Joaquim, Viriato, o anão, Zé Casquinha, Rozendo e Felipe, o belo. Por volta dos oito anos, seu prazer era olhar a cidade de cima do morro e ver, lá embaixo, as luzes acendendo; sonhava conhecer a cidade de perto. Às vezes, nessa contemplação, perdia o jantar e a surra, dada por sua tia Luísa, o aguardava. A tia foi pai e mãe para o menino, que só conhecia o nome paterno; Valentim, jagunço ligado ao grupo de Antonio Conselheiro, fato que deixava o garoto orgulhoso.
Nas brincadeiras, escolhia sempre o papel do pai. Uma de suas tarefas era ajudar a tia fazer mungunzá e mingau de puba para ser vendido à noite no Terreiro. Luísa sofria, de vez em quando, de severos ataques de dor de cabeça que a tiravam de ação. Jubiabá, o pai-de-santo, era chamado para atender a velha. Antonio Balduíno o temia. Muitas histórias corriam sobre o feiticeiro. Alguns meninos diziam que ele virava lobisomem, outros que prendia o diabo numa garrafa. Além disso, durante as reuniões, na casa do pai-de-santo, saía uma música estranha, uma batucada misteriosa que tirava o sono do menino. Por tudo isso, Balduíno temia Jubiabá.
Em certas noites e dias santificados, muitas pessoas se reuniam na porta de Luísa para contar casos passados e Jubiabá lá também estava, contando histórias que Antonio amava, evitando sair com os amigos para poder ouvi-las. Outro que se juntava ao grupo, era o malandro Zé Camarão, tocador de violão e contador de histórias sobre cangaceiros. O menino o admirava e era seu melhor aluno de capoeira. Desejava, ainda, aprender a tocar violão com o mestre. Essa era a forma de educação que recebia, acreditando que, quando crescesse, certamente teria suas aventuras narradas num ABC.
A vida no Morro do Capa Negro era difícil. Viviam das tarefas no cais, carregando cargas pesadas ou do trabalho em casas ricas. As crianças já sabiam seu destino; o trabalho no cais ou em fábricas enormes. Enquanto isso, os meninos ricos iam ser médicos, advogados, engenheiros, homens ricos. Também, podiam ser escravos desses ricos. Antonio Balduíno queria outro destino, desejava ser livre como Jubiabá e Zé Camarão. Tudo o que fez depois, veio das histórias de valentia ouvidas à porta da casa da tia Luísa. E elas falavam daqueles que se revoltaram contra o trabalho escravo, dedicado ao branco. Mas, Balduíno era também moleque travesso, líder das coisas malfeitas no morro.
Após três anos, Luísa passou a ter, com mais freqüência, fortes dores de cabeça. Nesses ataques tratava muito mal Balduíno e assim que melhorava, arrependida, punha o sobrinho no colo e o agradava. Era difícil para a criança compreender os humores da tia, tendo sempre a sensação de que iria perdê-la.
As dores passaram a ser mais freqüentes e Luísa enlouqueceu de vez, sendo levada para o hospício. Antonio Balduíno foi morar com o comendador Pereira, numa casa na Travessa Zumbi dos Palmares e, pelo caminho, só desejava fugir. Ficou amigo da filha do casal, Lindinalva. A cozinheira Amélia, enciumada porque o tratavam bem, lhe dava surras violentas. Na escola, o moleque chefiava todas as malvadezas, até ser expulso como aluno incorrigível. Jubiabá levou-o até o hospício para visitar a tia. Mas, na segunda visita, foi para acompanhar o enterro de Luísa.
A vida na casa do comendador tornou-se insuportável, porque o ódio da cozinheira aumentava dia a dia. Balduíno tinha agora quinze anos e Amélia inventou que o rapaz ficava olhando as pernas de Lindinalva, além de espiá-la na hora do banho. O comendador, furioso com essa história, lhe deu tremenda surra que Antonio fugiu de casa. Maltrapilho
passou a freqüentar as ruas do centro de Salvador e a mendigar.
Tornou-se o líder dos desocupados, especialista em pedir esmolas da maneira mais comovente. O dinheiro apurado era dividido entre os membros do grupo. Mais tarde, dedicaram-se a assaltar as pessoas durante os festejos de carnaval, a festa do Bomfim e as do Rio Vermelho. Assustavam a todos com suas navalhas, punhais e canivetes.
Passaram-se dois anos e os garotos, já homens fortes, não conseguiram mais convencer as pessoas a lhes dar esmolas. Acabaram presos como malandros e desordeiros, apanhando dos soldados até sangrarem, sem nenhum direito de defesa. Foram fichados e ficaram por oito dias na cadeia. Ao saírem livres, voltaram a vagabundear pela cidade, contudo, aos poucos os membros foram se distribuindo em trabalhos diversos. Antonio Balduíno voltou ao morro para malandrear com Zé Camarão, jogar capoeira, tocar violão e ir às macumbas de Jubiabá.
Balduíno tornou-se um bamba na capoeira, exímio tocador de violão e bom compositor de sambas, vendidos para serem gravados, com sucesso, por Anísio Pereira, que afirmava ser o compositor de todos eles. Antonio namorava Joana e com o dinheiro recebido por dois sambas vendidos, comprou sapatos para si e um corte de chita para Joana. Toda vez que a amava, no areal, sonhava com o corpo de Lindinalva.
O casal freqüentava o bar "Lanterna dos Afogados", mas Joana não gostava do local por ser mal freqüentado. Copeira na casa de D. Vitória, a moça morava num quartinho nas Quintas. Tinha ciúmes de Balduíno, pois sabia que o negrinho amava outras mulatas. Aos dezoito anos, Balduíno tinha grande prestígio entre as empregadas, lavadeiras e negrinhas que vendiam acarajé e abará. O negro levava uma vida boêmia, enquanto Jubiabá trabalhava em seu terreiro, fazendo macumbas, recebendo amigos e pessoas que vinham de fora pedir despachos. Toda sorte de gente procurava o pai-de-santo, de ricos de automóvel a doutores de anel.
Uma noite no "Lanterna dos Afogados", Balduíno foi procurado por um gringo, Luigi, que o tinha visto brigar com o soldado Osório por causa da mulata Maria dos Reis que acabou se tornando amante de Balduíno. O homem o convidou para lutar boxe, oferecendo-se para ser seu treinador. Acabou contratado por Luigi e, o companheiro de infância e boemia, o Gordo, se tornou seu ajudante. Seguiram-se várias lutas em que ora perdeu, ora saiu vencedor.
Mas a tristeza maior veio quando Maria dos Reis parte com a madrinha para morar no Maranhão. Chora de saudades, porque era a única mulher que não lhe recordava Lindinalva. Acabou campeão da Bahia, tornando-se o Baldo, campeão baiano de todos os pesos. Um empresário do Rio o procurou e pagou cem mil-réis para Baldo perder a luta.
O negro aceitou a oferta, exigindo pagamento em adiantado. No dia acertado, venceu mais uma vez, deixando o empresário aturdido. A carreira de boxeador de Balduíno terminou no dia em que leu no jornal sobre o noivado de Lindinalva com o advogado Gustavo Barreiras.
Balduíno e o Gordo embarcaram no saveiro de Mestre Manuel e ficaram trabalhando na cidade velha de Cachoeira, onde se fabricava charutos. Vagabundeavam por lá, vendo as tristes mulheres voltando das fábricas. Notaram que, enquanto os homens da terra aguardavam as mulheres do trabalho, pescando ou arranjando uns vinténs com as canoas, os alemães, donos desses estabelecimentos, comiam do bom e do melhor e sonhavam com a futura guerra que venceriam.
Balduíno acabou matando o capataz Zequinha, durante uma briga, abandonando seu punhal nas costas do morto, denunciando a autoria do crime. Escondeu-se no mato, acusando Zequinha da briga, porque este o vivia perseguindo por causa de uma menina de 12 anos, Arminda. Os homens da fazenda entraram no mato a sua procura. O assassino os ouviu dizer que a capoeira estava toda cercada e que o fugitivo não teria escolha; ou morreria de fome, ou teria que se entregar para ser preso.
Com os pés sangrando e o rosto rasgado por espinho venenoso, Balduíno resolveu enfrentar a situação, pronto para matar ou morrer. Pensava na sua história que seria contada a todos: Antonio Balduíno foi mendigo, boxeur, fazedor de sambas, desordeiro e matou um homem por causa de uma menina, acabando morto diante de vinte homens, lutando valentemente.
Apesar de tudo, conseguiu fugir ao cerco, buscando proteção num casebre imundo de um velho que lhe limpou os ferimentos e lhe deu o que comer. Ficou sabendo que Zequinha não morreu, foi apenas ferido e o patrão queria dar em Balduíno uma boa surra. Após a estada de três dias no casebre, conseguiu fugir clandestinamente num trem com destino à Feira de Santana. No vagão, ponderava com outros elementos ali escondidos, a tristeza que era ser pobre.
Em Feira de Santana, tentava conseguir uma carona para Salvador, quando deu de repente com Luigi que o levou para ser lutador no circo arruinado de sua propriedade e de Giuseppe. Este, embriagado, caiu do trapézio e morreu. Luigi vendeu o circo e dividiu o dinheiro com os empregados. Balduíno partiu com a dançarina do circo, Rosenda Rosedá.
O casal recebeu o urso como pagamento e procurou fazer dinheiro com o animal. Partiram no saveiro "Viajante sem Porto" do mestre Manuel para Salvador, juntando-se lá com os companheiros Joaquim e Gordo.Levaram o urso para a feira. Conseguiram fazer dinheiro com o animal, porque o Gordo bom contador de histórias foi encantando o público com suas narrativas cheias de anjos e peripécias. Balduíno avisava a todos que o urso tinha vindo diretamente das selvas africanas e já tinha matado três domadores, enquanto Rosenda ia lendo as mãos dos homens.
Ao chegar à feira, Jubiabá juntou-se ao grupo que comia e bebia o dinheiro arrecadado até que um mulato decidiu colocar um charuto aceso, no nariz do urso. Balduíno deu pancada para todos os lados. Finalmente, todos se aquietaram, felizes pelo divertimento.
O tempo passa, Balduíno, cansado de Rosedá a abandonou. Encontrou por acaso com Amélia, a cozinheira que lhe desgraçou a estada na casa do comendador. Ela lhe diz que Lindinalva, o amor da vida de Balduíno, não estava casada, caiu na vida, depois de ter sido seduzida pelo noivo. A mãe de Lindinalva faleceu e o pai gastou toda fortuna com mulheres. Lindinalva, com um filho para educar, era prostituta da pensão Monte Carlo. O filho ficava aos cuidados de Amélia, enquanto a mãe trabalhava, mudando-se cada vez para quartos mais pobres.
Uma noite, ao sair com amigos para o "Lanterna dos Afogados", Balduíno encontrou Lindinalva. Meses, mais tarde, a moça, doente à beira da morte, lhe pediu perdão e que ajudasse Amélia a criar seu filho, Gustavo. Balduíno ficou triste com a morte da amada. Quis que seu caixão fosse branco, porque a considerava uma virgem. Dizia que ninguém a possuiu, pois era prostituta e não gostava dessa vida. Ele sim a possuiu no corpo de suas amantes, de todas que dormiram com ele.
Decidido a ajudar na educação de Gustavo, Balduíno empregou-se na estiva, no lugar de Clarimundo, morto por um dos guindastes. Estourou a greve dos condutores de bonde e toda cidade foi trabalhar a pé. As padarias acabaram aderindo ao movimento e os entregadores de pão jogaram os cestos na rua. Balduíno brincava com o filho de Lindinalva, quando os amigos vieram procurá-lo, buscando apoio para o movimento. Chegando ao sindicato, o voto do negro decidiu a vitória dos grevistas.Descobriram depois, que tinham votado contra pessoas que nem eram da estiva e muito menos do sindicato.
Balduíno estava feliz com a paralisação e radiante por fazer parte da comissão de greve. Tudo estava parado. O negro se sentia o dono da cidade. Sempre desprezou os trabalhadores, preferia se suicidar a juntar-se a eles e, no entanto, agora os admirava, sabia que podiam deixar de ser escravos. Tinham a vida da cidade nas mãos. Essa descoberta o fazia renascer.
Durante a assembléia, narrou a vida dos camponeses nas plantações de fumo, descreveu o trabalho das mulheres nas fábricas de charuto, falou dos homens sem mulheres. Saiu carregado em triunfo sob os aplausos dos amigos. Um dos investigadores, que a tudo observava, o fitou para não esquecer aquele rosto.
No palácio do governo, o advogado, Gustavo Bandeira, pai do filho de Lindinalva, negociava pelos grevistas, avisando-lhes que a reunião seria prolongada, mas a solução seria honrosa. Lutava para que as reivindicações dos operários fossem atendidas, mas os patrões insistiam em atender apenas 50% delas.
A caminho do restaurante, o advogado da Companhia, Dr Guedes, e o diretor americano, Tomas, convidaram Gustavo para ser o segundo advogado da firma. Diziam que não o estavam comprando, desejavam ter um representante dos trabalhadores na companhia. Defenderia, portanto, os interesses dos operários ao compor o quadro da diretoria.
Gustavo pensou na esposa, Zuleika, e no carro que esta tanto desejava, na possibilidade de chegar ao parlamento. O americano Tomas lhe ofereceu oito contos por mês pelo trabalho. O advogado disse que o dinheiro não era o mais importante e, sim, sua condição de ser o representante dos operários.
Gustavo veio para a assembléia e apresentou a oferta de 50% dos patrões, falando-lhes que deviam aceitá-la, pois a miséria poderia cair sobre seus lares. Os líderes mais experientes alertavam os trabalhadores, dizendo que estavam sendo enganados e por isso deviam resistir. Os operários saiam às ruas, gritando por greve geral e para impedir que outros trabalhassem. Na Baixa do Sapateiro, o conflito era sério com mortos e feridos por todos os lados. O Gordo enlouqueceu, quando uma das balas dos soldados atingiu uma negrinha, ferindo-a mortalmente. O rapaz saiu gritando pela rua: onde está Deus, estendendo os braços como se a carregasse junto ao corpo.
Finalmente, o governo e os patrões comunicaram à comissão de grevistas que lhes concediam o que pediam e a greve se encerrou. Com a vitória, Balduíno visitou Jubiabá que o recebeu como se ele fosse o maior dos santos. O negro disse ao pai-de-santo que tinha descoberto o que os ABCs ensinavam e que tinha achado o caminho certo. Os trabalhadores que antes desprezava eram os verdadeiros donos da cidade. Eram escravos, mas estavam lutando para se libertar. A luta verdadeira era a greve. E isso nem Jubiabá sabia.
Sonhava que um dia partiria num navio e faria greve em todos os portos. Sabia que não entraria mais pelo mar, para a morte como fez seu amigo Viriato, o anão. A greve o salvou. Do navio, daria adeus. Ele fez a greve e aprendeu a amar a todos os mulatos, negros e brancos que eram escravos e estavam rebentando as cadeias. Eram todos homens de luta como Zumbi dos Palmares.
O ABC que Antonio Balduíno tanto sonhara saiu contando sua vida, era vendido no cais, nos saveiros, nas feiras e Mercado Modelo, trazendo na capa vermelha um retrato do tempo em que o negro era lutador de boxe.
Fonte: NILC - USP.
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