Desafio o caro leitor a encontrar alguma informação do cotidiano que não tenha um componente geográfico. Tudo ou quase tudo que percebemos, armazenamos, discutimos, compartilhamos, aprendemos, tem alguma conexão geográfica com o mundo que nos cerca. Aproximadamente 70 a 80% das informações relevantes nos processos decisórios, pessoais ou profissionais, têm caracterização espacial.
Dada essa tremenda relevância, seria de se esperar altíssima utilização de sistemas de informação geográfica nas organizações, apoiando a tomada de decisões importantes para as diferentes organizações. No entanto, seu uso ainda é incipiente. Alguma dificuldade tecnológica ou de infraestrutura? Muito pelo contrário: o desafio é cultural.
O território é atualmente a plataforma na qual se inserem todas as dinâmicas que devem ser observadas ou geridas diretamente pelo gestor público ou privado. É por meio de uma visão holística do território, ou do espaço geográfico, que todas as idiossincrasias e relacionamentos entre os principais indicadores de gestão se estabelecem. É através da perspectiva territorial que o binômio “desempenho – risco” consegue melhor ser percebido por intermédio da proposição e acompanhamento de práticas empresariais e políticas públicas.
Compreender a distribuição de dados oriundos de fenômenos ocorridos no espaço geográfico constitui hoje um grande desafio para a elucidação de questões centrais em diversas áreas do conhecimento, seja em saúde, educação, meio-ambiente, políticas públicas, eleições, prevenção de desastres naturais ou mesmo em estudos de dinâmica urbana, social, serviços financeiros, seguros, infraestrutura, administração e marketing.
Tais estudos vêm se tornando cada vez mais comuns, devido à disponibilidade de Sistemas de Informação Geográfica (GIS), e também à necessidade de explicação da distribuição geográfica de problemas e variáveis de interação socioeconômica que modelos tradicionais e clássicos geralmente não endereçam.
As ferramentas quantitativas que manipulam dados espaciais permitem que se incorpore a natureza geográfica do fenômeno nas técnicas de exploração de dados e nos modelos estatísticos de inferência e associação entre variáveis. Sua adaptação e endereçamento aos principais problemas das organizações em geral, envolvendo dados internos e dados secundários de características sócio-econômico-demográficas, é muito alta. Mapa é uma linguagem universal, e vale mais do que mil palavras.
Recentemente, cunhou-se o termo “Inteligência Geográfica” como o uso da perspectiva geográfica nas tomadas de decisão pelas empresas, públicas e privadas.
Contudo, para a maioria das pessoas, geoinformação se resume a procurarmos o endereço de casa no Google Maps ou a utilizar o Waze no carro para se chegar rapidamente ao destino.
Essa dificuldade de percepção certamente tem origem histórica – nossa intuição espacial não foi devidamente alimentada durante nossa formação educacional.
Alexander Von Humboldt (1769-1859), que dizia que a Geografia é a ciência integrativa, e muitos outros pensadores que o sucederam, não foram capazes de impedir que a Universidade de Harvard, na década de 1940, erradicasse seu Departamento de Geografia. Tal movimento foi seguido por outras relevantes instituições de ensino norte-americanas e do resto do mundo. Por conseguinte, mais de setenta anos depois vivemos a consequência desse ato. A imensa maioria de cursos de administração, economia, engenharia e outros, inclusive do Brasil, passou a ter poucas disciplinas que permitisse discutir aspectos analíticos derivados de perspectivas geográficas. Inovações históricas como Imagens de Satélite, GPS, MapQuest, servidores digitais de mapas, ferramentas digitais de análise geográfica, Google Maps, ArcGIS não foram percebidas, experimentadas ou discutidas no contexto educacional de nossos jovens.
Com isso, o profissional que hoje está na liderança das grandes organizações não adquiriu repertório de “pensamento geográfico” suficiente em sua formação. As decisões estratégicas das organizações passam inevitavelmente pelo pensamento de suas lideranças, e são tomadas segundo seus modelos mentais de decisão. Se a perspectiva geográfica é ignorada ou pouco considerada, então ela praticamente inexiste naquela organização – não será suplantada por equipes técnicas excelentes, que atuam em áreas específicas, e que não têm uma visão holística e sistêmica que caracteriza a alta direção.
Movimentos recentes, no entanto, sinalizam boas perspectivas de mudança. Salas de decisão recentemente implantadas pelo poder público em esfera municipal e estadual, em muitas localidades do Brasil, utilizam um grande mapa do território de atuação como plataforma de visualização e análise e estão permitindo que seus times de operação (e decisão) aprendam essa nova linguagem. Empresas fornecedoras de dashboards e painéis de indicadores de gestão já apresentam mapas e visualizadores geográficos.
Devemos, portanto, incentivar o enfrentamento desse desafio cultural, em prol de uma visão de gestão territorial que beneficie a todos. O Big Data, contexto recente de “poder da informação” na sociedade atual, tem tremendo potencial de investigação sob a perspectiva geográfica. Mas isso é papo para uma próxima conversa. Que venham os líderes geográficos!
Eduardo de Rezende Francisco é professor de Métodos Quantitativos, Geoinformação e Big Data da FGV-EAESP.
Fonte: Estadão
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