A Justiça trata de maneira “diferenciada” os ricaços que têm mansões perto do Jardim Botânico – entre eles, o atual secretário de Habitação do Rio, Índio da Costa
por Anne Vigna / Agência Pública
Se comparadas com Condomínio Canto e Mello, as casinhas da comunidade do Horto parecem pequenas, minúsculas, escondidas no meio de floresta. É que, além da comunidade – onde a maioria ganha até três salários mínimos – ao longo das últimas décadas surgiram e cresceram ao redor da floresta, cujas terras são da União, condomínios fechados, privados e muito exclusivos. E a diferença não está só no tamanho e no valor das moradias: esses condomínios receberam um tratamento bem diferenciado na Justiça.
Construído na década de 1980, o condomínio Canto e Mello tem uma parte dentro do terreno do Jardim Botânico, acima da cota 200 – o que significa que é uma zona de proteção ambiental e de risco, onde não poderia haver construções.
Depois de uma longuíssima ação civil do Ministério Público Estadual e da Prefeitura do Rio, a Justiça proibiu a construção de mais casas. O laudo técnico atesta que “resultou absolutamente comprovado o dano ambiental provocado pelos réus, e acentuado ao longo dos mais de vinte anos de tramitação do feito, por isso que ao tempo da distribuição da ação, em 1991, havia apenas 8 casas edificadas, e em 2003, quando realizada a perícia, malgrado a liminar deferida nos autos, a proibir o prosseguimento e o início de novas construções, outros 17 imóveis foram erguidos, e o vigésimo sexto, ao arrepio da referida decisão judicial, já se encontrava em construção”.
Em 2012, o condomínio foi regularizado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), em troca do pagamento de multa pelos danos ambientais causados. A administração recorreu e a contenda está no Supremo Tribunal Federal – por isso, o valor não foi determinado ainda. O argumento que garantiu a permanência do condomínio não é diferente daquele usado pelos 2 mil moradores da comunidade do Horto sob ameaça de expulsão, onde há mais de 200 pedidos de reintegração de posse já concedidos pela Justiça.
“O direito à moradia que está na Constituição Federal foi invocado no nosso caso, mesmo sendo área da União”, explica o advogado do Canto e Mello , Felipe Amorim. “Era o direito que eles tinham de já ter construídas as casas; então, se as casas fossem demolidas, essas famílias não teriam onde morar. Foi um dos argumentos pelos quais o Tribunal entendeu também que não deveria demolir as casas.”
O condomínio Canto e Mello é formado por uma rua que sobe abruptamente. Subindo a ladeira, se entende de fato o que diz o laudo técnico sobre o “declive de 45° e sua cota 200”. Com guarita e segurança na porta, ninguém que não seja convidado pode entrar. Mesmo assim, há um montão de vans e motos que sobem todo o tempo para levar o que precisar para cima. Olhando as casas – na verdade, 26 mansões – pode-se imaginar o tamanho das obras de construção e seus impactos ambientais. Para levantar o condomínio foram desmatados 7,55 hectares de floresta para as edificações e infraestrutura, segundo o laudo judicial. “Mas agora é muito verde, muito preservado, eles cuidam muito do meio ambiente”, explica o advogado.
É verdade: verde, tranquilo, com uma vista para o mar azul. Parece que a natureza entra nas casas. O advogado garante que há ações ambientais tomadas pelos moradores, mas não enviou mais detalhes até o fechamento dessa reportagem. Também não permitiu à Pública entrar no local.
De todo modo, o fato é que o condomínio ocupa uma área de reserva florestal – e de risco. Por isso, o TJRJ considerou que, mesmo sendo construções ilegais, seria ainda pior para o meio ambiente destruir as casas: “Nos seus esclarecimentos, acrescenta o expert, a demolição das edificações seria ‘medida de extremo radicalismo’ porque a biofragilidade local não suportaria tais intervenções (demolições, movimentos de máquinas e caminhões, etc.)”.
Para os habitantes do Horto, comunidade seriamente ameaçada de expulsão desde que seu território passou para a administração do Jardim Botânico, chama atenção a diferença de tratamento em um e o outro caso. Segundo um levantamento socioeconômico feito pela FAU/UFRJ, mais de 60% dos moradores ganham até três salários mínimos, 20% ganham até cinco e menos de 3% ganham de cinco até oito.
De um lado, moradores do Canto e Mello regularizados para não tomar uma “medida de extremo radicalismo”. De outro, o ministro Raimundo Carreiro, do Tribunal de Contas da União (TCU), afirmou peremptoriamente que os moradores do Horto deveriam ser “realocados dentro do programa Minha Casa Minha Vida”. O TCU decidiu, em novembro do ano passado, que o domínio pleno das terras onde está a comunidade está sob administração do Jardim Botânico. E o diretor do Jardim, Sérgio Besserman, deixou claro, em entrevista à Pública, que quer ver a comunidade fora das suas terras.
O problema, diz o diretor do Jardim Botânico, é que a comunidade vai se expandir. “Será que é justo pegar aquela linda floresta que é um terreno da União, instalar um pequeno grupo de pessoas, mas ter absoluta certeza que daqui a algum tempo essa floresta não vai existir mais?”, pergunta.
Lei pra rico, lei pra pobre
Nas mesmas terras da União, um clube privado, o Clube dos Macacos, ou Club 17, também entretém os moradores dos bairros do Jardim Botânico e da Gávea, que estão entre os mais caros do Rio. Fundado em 1964, o clube tem três piscinas, quadras de tênis e salão de festas, onde ocorrem baladas noturnas – bem diante da casa da senhora Olívia da Silva Alves, que vive na comunidade do Horto há 60 anos: “Por que o clube nunca teve problema com a Justiça, e só a gente?”, pergunta ela. Quem quiser ser sócio do clube tem que pagar R$ 10 mil, além de uma mensalidade de R$ 300 por mês.
“Todos podem ficar, menos a comunidade. Os ricos podem expandir suas casas, menos os pobres”, comenta Emerson de Souza, presidente da Associação dos Moradores do Horto (AMAHOR). “Aqui no Brasil, tem lei pra rico e lei pra pobre.”
Ele levou a reportagem a conhecer outro condomínio perto do Horto. Dentro do Parque da Cidade – outra Unidade de Conservação – fica outro condomínio irregular que também pertence à família Canto e Mello.
Segundo os guardas do parque, em poucos anos o condomínio passou de duas para 14 casas. Porém, a Secretaria Municipal de Conservação e Meio Ambiente – que confirmou à Pública que o condomínio está dentro de uma área conservada –, não vê problema: “Não houve recentemente aumento da quantidade de casas dentro da Unidade de Conservação, tendo sido realizadas, no entanto, ações de melhorias e expansões verticais dos imóveis já existentes na área”, explicou a secretaria por e-mail.
Os moradores do Horto se preocupam com o seu destino porque não se esquecem da expulsão de outra pequena comunidade, de 20 casas, na década de 1990, que ficava na rua Sara Vilela, ao lado da Floresta da Tijuca. “[Eles foram expulsos] com o mesmo discurso de preservação ambiental”, explica Emerson. “Agora essas famílias estão em um mangue em Jacarepaguá e as ricas famílias expandiram suas mansões justo nessa zona de proteção ambiental.”
No lugar da comunidade, está hoje o bairro conhecido como Alto Jardim Botânico, que tem uma associação própria e um serviço de segurança diferenciado. É um dos acessos ao Parque Nacional da Tijuca. Entre os proprietários das terras está a família Mariani, proprietária do antigo Banco da Bahia, hoje chamado Banco BBM. Em sua tese de mestrado em engenharia urbana ambiental na PUC-RJ, um dos membros da família, Tomás Mariani, que preside a Associação dos Amigos do Jardim Botânico, escreveu sobre a “Expansão das áreas de favela e de risco em torno do Parque da Tijuca”. Nessas cem páginas de pesquisa, não há sequer uma linha sobre o crescimento dos condomínios e das mansões de luxo. Tomás não quis dar entrevista à Pública.
Para o diretor do Parque Nacional da Tijuca, Ernesto Viveiros de Castro, o condomínio Alto Jardim Botânico é, sim, uma preocupação. “Tem expansão urbana dentro das florestas perto do parque, mas não dentro do parque. Isso nos preocupa porque, com menos florestas ao redor do parque, menos o parque está protegido.” O diretor confirma que a última casa do condomínio que ainda está em construção, a poucos metros da trilha de entrada, “recebeu, sim, uma permissão em regra da Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação”.
A casa em questão tem um proprietário famoso, o ex-deputado federal Índio da Costa, atual secretário municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação do Rio de Janeiro. Segundo o diretor do parque, Índio da Costa já havia recebido “a permissão de construir e cortar árvores antes de ser o novo secretário”. Uma reportagem da revista Veja relata que a propriedade, estimada em R$ 8 milhões, terá três andares e 841 m2 quando concluída.
O desmatamento feito para a construção está na mira do Ministério Público Estadual. O MP negocia agora com o novo secretário um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para compensar a derrubada de árvores do terreno de 1.800 m2 .
Procurado pela Pública, Índio da Costa não respondeu aos questionamentos.
Crédito da imagem destacada: Marie-Charlotte Devise/Agência Pública.
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